terça-feira, 30 de outubro de 2007

POSTAGENS

§18
Olhai o chão. Não é teu, hoje, mas você possuirá um dia a habilidade de possuí-lo?

Se o chão se movesse de acordo com os seus passos, poderíamos dizer que, como um cão domesticado o chão é seu, e que o possui realmente. Se no chão você pudesse se deitar sem sentir desconforto: dureza, frio, poeira; se pudesse sentir-se como um verme entre os vermes, diríamos: “O chão é teu melhor bem adquirido, pois se estende por todos os lados". Teríamos, portanto, esse – porto seguro? – conosco, por todo o tempo. Mas, o chão não se move a nosso favor. Independe do nosso caminhar – e se movimenta não obstante! Independente do nosso viver, e ele vive – possui! - um mundos
, sistemas estelares, galáxias inteiras, dimensões! quem sabe? Não podemos nos remeter irritados para o chão: “Vamos chão! Se movimente...! Em frente!”. Não sei onde meus pés darão... Não propriamente pela incerteza de meus pés, mas pelas incertezas do chão. Quando pensamos como chão, e não como nós mesmos, vemos porque o universo inteiro se nos torna indiferente.

§17Sabemos por Nietzsche que é estúpido, sem falar completamente infecundo, ler ao nascer do sol. Hoje não estamos como Baudelaire que dizia: "Existem manhãs em que abrimos a janela e temos a impressão de que o dia nos está esperando".

Nietzsche: "A dor diz: Passa. Mas toda alegria quer uma profunda, profunda eternidade". Estou no meu colchão e quero uma profunda eternidade.

Pois, a alegria é a liberdade! Mas estamos no mundo do frustrado, queridos amigos!

"Arbeit Macht Freit": O trabalho Liberta - tarde da noite, cedo de manhã!




§16
Hoje passo meus dias na biblioteca do IEL.

Tenho as estantes em mente, as conheço como ruas de uma cidade natal. Lavo as mãos no banheiro, já olho: Pascal, Pascal, Pascal...:
Primeiro, meus preferidos, os Russos, mas posso começar do fundo, da penúltima estante, com os originais em latim de Ovidio e Virgilio, ou talvez a biografia surpreendente de Salomé sobre Nietzsche. Lá tenho também suas impressões sobre Rilke, Freud. Voltando aos Russos, tenho Dostoievski, por algum motivo paralelo a Maiakovski, apenas atravessando a rua. Perto dele, em uma casinha roseada, mora Pushkin, vizinho deste, um Tchecov, Tolstoy, Turganiêv, Leskov não temos ainda o bastante, mas Benjamin. Fecho os olhos e vejo Benjamin. Haroldo e Augusto de Campos, Boris Schnaiderman. Capas novas, capas recortadas. Editora 34. A frente, Victor Hugo. Notre Dame de Paris e Quasimodo. Les Miserables. Um olhar de desdém enquanto observo à frente: Rilke, Kafka, Mann, Goethe. Fausto de Mann. Fausto de Goethe. Fausto Zero! Saio da ultima ala para a primeira. Deixo minhas coisas na mesa: meu cigarro, meu walkman, meu caderno. Me deleito na estante de Baudelaire, Blake: as gravuras de bronze, seus métodos: uma placa de cera acima de uma placa de bronze; desenhava com um instrumento que cravava e derretia minuciosamente a cera, assim ele ilustrava. Depois, a ilustração já feita - jogava ácido. Retirava-se a cera e a ilustração já estava gravada no cobre. Fazia-se então a impressão. Vou ao Teatro, Staninslavski, Brecht, Beckett. Alguns dias acima dos jogos teatrais, por pura paixão. Gosto de meninas que gostam de teatro, então procuro absorver tudo que posso sobre o tema, num impulso viril impressionante - mesmo porque sou timido e muito pouco afeito à atuação ou aos jogos e brincadeiras teatrais! Depois, adiante, Dylan Thomas (ele era timido) Henry Miller, Salinger, e olhe a esquerda, Chaucer!, à direita, logo abaixo dos modernistas estadunidenses. Terei de retornar se quiser chegar a Ezra Pound e T. S. Eliot. Elizabeth Bishop ao lado de Clarice Linspector, algum erro do estagiário? Vejo a tradução de Clarice, do Poe. Machado de Assis traduzindo 'O Corvo'. Uma critica de Manuel Bandeira ao teatro de Brecht, mais precisamento ao "Circulo de Giz-Caucasiano" o qual teve a chance de traduzir. Tenho um trecho deste livro em casa, ou tenho o livro? Volto ao teatro, Artaud dessa vez, longamente, e preciso pausar para fumar, vou ao ponto de ônibus, encontro o Danilo, Leonardo, Thaís, Marcos, Mario, Franco, Lucas ou Luciana e volto. Volto com impulso para achar o Bashô, Ópera de Pequim, referências à Van Gogh, suas cartas à Vincent, Historia da Loucura? Não, o dia é longo, lembro da aula, nem sei que aula tenho hoje, cabulada deste o ínicio; acabo dando de encontro com Genet, Camus, literaturas inconsequentes e acidentais. Mas, já vejo a secretária simpática, a pele negra brilhando laranja, o sol vai caindo agora. Acabo sentado no chão com um livro de Diderot no colo - leitura para a aula (mas nem lembro que disciplina precisamente. Seria Estética? Estética. Na ala mais próxima da entrada, Adorno, Benjamin, Burke, Diderot, Voltaire, a epistemologia dos clássicos, O Nascimento da Tragédia, o Livro V de O Mundo como Vontade e Representação).

Termino o dia com o
Diderot comentado por Jacó Guinsbourg, enquanto ao meu lado fede um desprezível Kant, com comentários de Seljo Loparic.

§15
O UIRAPURU
Para explicar a ausência periódica de um de seus deuses, nativos brasileiros encantaram um pássaro com espírito do burlesco, isto é, o transformaram em entidade, e a esta entidade deram o nome de Uirapuru, em tupi guarani wirapu ‘ru, que se traduz: o pássaro que não é pássaro.
Como uma entidade que é - também - aquilo que não é, consiste em uma raridade. Enquanto alguns afirmam ser rarissima sua presença na mata aberta, outros afirma ser a ave da corte, anda como um semideus, rodeado de outras aves. Contaram-me outra lenda indigina: versa a história de uma mulher, de nome Oiribici. Perdida de amor por um tuxaua, mas incapaz de consumir a paixão, pede para que Tupã, o demiurgo tupi-guarani, a transforme em um pássaro; avisaram-me que uma lenda do norte conta história semelhante.
O pássaro transmutado por Tupã sofre na floresta, e tem o respeito de todos os animais, comovidos por seu canto, resultado do impossível, um silogismo do absurdo.
Fosse movido pelo sofrimento de jovens apaixonados, fosse pelo capricho de uma divindade, o Uirapuru canta na solidão da floresta.

Embora sublime e perfeito, garantem-nos que esse seu canto pode ser ouvido por períodos de apenas 15 dias anuais, por volta de 5 a 10 minutos por dia, nos primeiros momentos da aurora.

Disseram-nos que o Uirapuru nunca repete a mesma frase musical.

§14
Zagreus, um dos heróis de Camus, não trabalha. Em parte, porque é aleijado, e depois, porque é rico - e não precisa.

Patrice Mersault - não exatamente o mesmo Mersault do L'Etranger - é saudável e por isso pode trabalhar, e não só pode trabalhar como deve, por que é pobre.

A história d'A Morte Feliz, como no L'Etranger, é sobre consciência. Não uma consciência unificadora, vórtice para a razão, uma consciência denominadora, edificadora, mas o próprio ato de tomada de consciência.

No caso de La Morte Heureuse a premissa é simples: O caminho primordial para a felicidade é o dominio do homem diante de seu tempo.

Zagreus vive no mundo da contemplação. A partir das situações que observou durante sua vida, o árabe traça uma consciência necessária para si. Trabalhou em negócios que permanecem pelo romance escusos ao leitor, e não se sabe se a pequena, mas considerável, fortuna que juntou fora adquirida lícita ou ilícitamente. Um acidente de carro lhe tira ambas as pernas. Um corpo cortado ao meio, Zagreus parece, aos olhos de Mersault, um Buda.

Mersault vive agrilhoado à dialética do trabalhador (ou do trabalho, por assim dizer): amanhece, trabalha, almoça, trabalha, janta, dorme, amanhece. Não afirma necessariamente essa síntese cotidiana, mas a vive plenamente na experiência de seus dias. Tem uma consciência igualmente agrilhoada. É por ela que conhece o mundo, mas não conhece a si mesmo.

Zagreus é consciente de si - e paga caro por isso, e pagará ainda mais caro ao final.

Se Dostoievski e Pessoa estiverem certos, a consciência hipertrofiada machuca, e é uma doença irrevogável, irretornável, e não prescreve. Edgar Allan Poe concedeu mágica ao momento da consciência de nossa própria decadência: deu nome a isso "olhar perverso". Foi o mesmo que fez Dostoievski ao nos dar o azedo e amargo protagonista das Memórias... . Nietzsche chamava a "consciência" de um grande mal oriundo apenas do erro, de nossa arrogância em reconhecer no mundo nossa doutrina de denominações, de ciência, da razão.

Mas, o olhar do homem do subsolo vai além do muro da ciência, e quer dizer de si mesmo. Deste modo, a consciência é a força propulsora de ações inconstantes, caóticas e mutantes. O olhar perverso é o olhar frio e cru que se estatela na realidade. O olhar de Hawthorne, de Melville. Reconhece a instrínsica e sinistra condição das coisas no mundo.

A religião, a supremacia da razão: estas escatológicas saídas (redenções?!) atingem apenas uma parte do problema. Pois que, afinal, é preciso trabalhar... E para trabalhar precisamos sair de nossas camas. E para sair da cama, não basta filosofia. É preciso mais do que um bando de aforismos para levar suas juntas ao transporte público, no frio, no calor, do transporte pelo mar de gente, até seu departamento, de seu departamento ao batente. amanhece, trabalha, almoça, trabalha, janta, dorme, amanhece.
Que diabólico móbile nos move quando no labor inútil?

Enquanto Zagreus é verdadeiramente consciente, Mersault está em estado de revolta. Em estado de revolta, não se têm consciência propriamente dita, apenas uma farsa, uma noção burlesca de um núcleo de ações e reconhecimentos, que me definem, e me definem perante a Animalia apenas de forma contigente, convencional, e de maneira alguma consistente. Peixe, sem consciência, Bowie, com consciência. Como nos alerta Nietzsche na Gaia Ciência: "Pensa-se que este orgulho [a consciência] forma o núcleo do ser humano; que é o seu elemento duradouro, eterno, supremo, primordial! Considera-se que o consciente é uma constante! Nega-se o seu crescimento, as suas intermitências!". Sem intervalos constantes entre uma faceta e outra da consciência, não há verdadeira consciência, verdadeira dialética em seu conceito. A verdadeira consciência é o pano de fundo para as tormentas de nossas decisões, de nossas conquistas, do resultado de nossa liberdade. Pulsão de força. Vontade poder. Vontade. Felicidade.

Mersault não sabe exatamente o por que de não ser feliz, mas entende que seu trabalho o priva de qualquer possibilidade de um dia ser feliz. Não sabe o motivo de não se entender como um homem feliz, mas reconhece o absurdo que seria se o fizesse. Compreenderá com Zagreus que tempo é liberdade, e que o trabalho escraviza o tempo. Que com dinheiro se compra o tempo e com isso a liberdade de escolher, de entender.

A matriz de um ser consciente é a realização que a frustração é a latente condição do mundo. Nossa liberdade se restringe apenas à nós mesmos, e sobre o mundo, a rigor, não possuímos qualquer domínio. Nossa consciência está alicerçada ao erro e apenas uma consciência primeva esquenta em nosso espirito: a consciência de afirmar, de viver, de ser livre e feliz - satisfeito!

Zagreus sabe que não é o trabalho que liberta.
Não somos escravos do dinheiro, condição e contigência (convenção) humanas; somos escravos do tempo. Goethe: "O campo do homem é o tempo".

Don Juan pode muito bem consumir os amores que têm, todos os amores que possui e que são muitos, mas não pode, de fato, definir por exato quantos amores terá e tampouco por quanto tempo os consumirá. Isso é do mundo.

Após os ensinamentos de Zagreus, Mersault premedita seu assassinato. Zagreus confessa ter impulsos suicidas, e que de certo modo prepara a sua própria morte, inclusive revela a existência de uma carta suícida que guarda na mala com o dinheiro. Mersault pega a arma do amigo, mata-o e leva parte de seu dinheiro. Não foge, propriamente.

Mersault pega o dinheiro de Zagreus e parte para a Europa. Mas, o caminho para a morte feliz não se resume ao dinheiro, ou ao tempo de viver uma vida para-si. Não encontrará, senão na súbita consciência de uma vida indiferente, uma morte calada ao mundo e indiferente ao destino que se tomou, mas repleto de uma consciência límpida da sua condição absurda e mortal, alentada de uma felicidade imóvel.

Zagreus sentia empatia por Mersault, um reconhecimento de quem um dia também era saúdavel e amava, e usufruia da vida. Zagreus certamente não recusaria a morte, e Mersault não a negaria por qualquer convenção social. Mas, não era um ato de rebeldia, imoral: era apenas o seu caminho para a liberdade e a felicidade. Não roubou a felicidade ou a liberdade de quem fosse; e foi um instrumento para Zagreus em sua auto-aniquilação. Foi apenas por ser consciô de seu amor pela vida que deixa um lágrima escorrer antes de morrer.

Independente da morte heureuse, para Zagreus e Mersault bastaria apenas uma morte consciente.

É necessário que a jornada seja um constante "coscientizar-se".


§13
"Acontece que tenho um terrível amor-próprio. Sou tão desconfiado e suscetível quanto um corcunda ou um anão, mas, realmente, há ocasiões em que, se me derem uma bofetada, isso talvez me rejubile. Falo a sério; eu provavelmente descobriria aí um tipo especial de prazer - evidentemente, o prazer do desespero, pois é o desespero que encerra os mais intensos prazeres, particularmente quando se tem uma aguda consciência da própria situação".

Fiódor Dostoiévski
Memórias do Subsolo

§12
" rosa, pura contradição, ser o sono de ninguém sobre tantas pálpebras"
Rainer Maria Rilke (
1875-1926)

... que morreu de leucemia, agravada subitamente por um corte feito na mão enquanto colhia rosas para uma admiradora que o visitava em Valmont, na Suiça.

§11
Lendo Kafka no ônibus! Cheguei em casa com este caso singularíssimo do fantástico:

"Eu tenho um animal singular, metade gatinho, metade cordeiro. É uma parte da herança do meu pai, mas que se desenvolveu somente na minha época. Antigamente ele era muito mais cordeiro do que gatinho. Contudo ele tem agora de ambos, partes iguais. Do gato cabeça e garras; do cordeiro tamanho e aspecto; de ambos os olhos, que só inquietos e selvagens;o pêlo que é macio e rente ao corpo e os movimentos que são não só como saltos, mas também como andar sorrateiro. Na luz do sol sobre o peitoril da janela ele se faz roliço e ronrona e pelo campo ele corre como louco, sendo difícil agarrá-lo. Diante de gatos ele foge, cordeiros ele quer atacar. Em noite de luar, a calha do telhado é o caminho que mais lhe agrada. Ele não sabe miar, e tem aversão perante ratos. Ao lado do galinheiro ele fica horas a espreita, porém nunca aproveitou uma oportunidade de assassinato. Eu o alimento com leite açucarado, que é bem aceito por ele. Em longos tragos ele o absorve por cima de seus dentes de rapina. Naturalmente ele é um grande espetáculo para crianças. Aos domingos na parte da manhã é hora de visita. Eu fico com o animalzinho no colo e as crianças da vizinhança inteira se colocam a minha volta. Então são feitas as perguntas mais incríveis e que ninguém consegue responder: por que só existe um animal desse tipo; por que justamente eu o tenho; se já existiu antes dele um animal semelhante e como ele será depois de sua morte, se ele se sente solitário; porque ele não tem nenhuma cria, como ele se chama, etc. Eu não me dou o incômodo de responder, satisfaço-me sem maiores explicações em mostrar o que eu tenho. Às vezes as crianças trazem consigo gatos. Uma vez elas até trouxeram dois cordeiros; todavia, contra todas as expectativas das crianças, não houve nenhuma cena de reconhecimento. Os animais se observavam calmamente um ao outro com olhos de animal e aceitavam evidentemente sua existência como realidade divina. No meu colo o animal não conhece o medo nem o desejo de perseguição. Aconchegando-se a mim, ele se sente o melhor possível. Prende-se à família que o criou. Isso não deve ser uma fidelidade extraordinária, mas sim o legítimo instinto de um animal que tem na terra inúmeros aparentados, mas talvez nenhum parente de sangue. Por isso a proteção que ele encontrou nessa casa para ele é sagrada. Às vezes eu tenho que rir quando ele fareja à minha volta, passa se espremendo entre as pernas, de maneira alguma ele se separa de mim. Com isso, não basta ele ser cordeiro e gato, quer também ser um cachorro. Uma vez, como pode acontecer com qualquer pessoa, meus negócios iam mal, não encontrando mais solução, quis abandonar tudo, voltei para casa, sentei-me na cadeira de balanço com o animal no colo. Olhando casualmente para ele, vi lágrimas caindo dos seus enormes pelos do bigode. Eram minhas lágrimas ou dele? Será que esse gato com alama de cordeiro teria ainda ambição de homem? Eu não herdei muito de meu pai, mas essa herança é de todo considerável. Ele tem inquietações de ambos, do gato e do corteiro, por mais diferentes que eles sejam. Por isso ele se sente tão incomodado na sua pele. Às vezes ele pula sobre a poltrona ao meu lado, se apóia com as patas dianteiras no meu ombro e fica com a boca perto de minha orelha. É como se ele falasse algo para mim, e de fato ele se inclina para frente olhando meu rosto para observar a impressão que esta notícia me causou. Para agradá-lo eu fijo que o entendi, balançando a cabeça. Então ele pula no chão e dança ao redor. Talvez a faca do açougueiro fosse para este animal um alívio que eu, no entanto, tenho de negar-lhe por ser uma herança. Por isso ele tem que esperar até que a respiração lhe falte por si própria, mesmo que ele me olhe às vezes com olhar de humano entendimento que exige uma ação razoável." -
Franz Kafka, Um Cruzamento.

§10
i
Sentado apenas fizeram te os momentos,
E quando súbito de pé quis ficar,
Vieram e lhe amarraram na cadeira!
Então permaneceste ali em dado trono.
ii
Depois que o jovem pensara nas dunas
Que se variam em amplas imagens soberbas,
Do mundo possuiu no deserto longo,
Porta aberta para o divino e repleto de surpresas.
iii
Exposto, é onde está, prisioneiro!
Amarrado como bandeira, tremularás sempre!
E certamente antes do açoite final do vento,
É a esta bandeira que dedicarias tua vida inteira!
iv
É preciso se perguntar neste momento:
Quem tão inútil fim observava?
O olhar demente e as mãos pousadas,
Como se tricotassem um destino?
v
Se sonhares, deveis sonhar a Épica!
Se brilhardes, deve ser às sombras de tuas Épicas!
Mesmo que preso à cadeira pelos frágeis membros,
Mesmo que não ultrapasse o tremular débil desta bandeira.
iv
Chamai aqueles que encerram
Prazer na dificuldade e no sofrimento,
Pois estes são apenas De um tipo!
E no Tipo original estás, Original do Engenho.

§9
Não passo um dia sem ler este trecho:

Oh, Starbuck! it is a mild, mild wind, and a mild looking sky. On such a day -- very much such a sweetness as this -- I struck my first whale -- a boy-harpooneer of eighteen! Forty -- forty -- forty years ago! -- ago! Forty years of continual whaling! forty years of privation, and peril, and storm-time! forty years on the pitiless sea! for forty years has Ahab forsaken the peaceful land, for forty years to make war on the horrors of the deep! Aye and yes, Starbuck, out of those forty years I have not spent three ashore. When I think of this life I have led; the desolation of solitude it has been; the masoned, walled-town of a Captain's exclusiveness, which admits but small entrance to any sympathy from the green country without -- oh, weariness! heaviness! Guinea-coast slavery of solitary command! -- when I think of all this; only half-suspected, not so keenly known to me before -- and how for forty years I have fed upon dry salted fare -- fit emblem of the dry nourishment of my soul -- when the poorest landsman has had fresh fruit to his daily hand, and broken the world's fresh bread to my mouldy crusts -- away, whole oceans away, from that young girl-wife I wedded past fifty, and sailed for Cape Horn the next day, leaving but one dent in my marriage pillow -- wife? wife? -- rather a widow with her husband alive! Aye, I widowed that poor girl when I married her, Starbuck; and then, the madness, the frenzy, the boiling blood and the smoking brow, with which, for a thousand lowerings old Ahab has furiously, foamingly chased his prey -- more a demon than a man! -- aye, aye! what a forty years' fool -- fool -- old fool, has old Ahab been! Why this strife of the chase? why weary, and palsy the arm at the oar, and the iron, and the lance? how the richer or better is Ahab now? Behold. Oh, Starbuck! is it not hard, that with this weary load I bear, one poor leg should have been snatched from under me? Here, brush this old hair aside; it blinds me, that I seem to weep. Locks so grey did never grow but from out some ashes! But do I look very old, so very, very old, Starbuck? I feel deadly faint, bowed, and humped, as though I were Adam, staggering beneath the piled centuries since Paradise. God! God! God! -- crack my heart! -- stave my brain! -- mockery! mockery! bitter, biting mockery of grey hairs, have I lived enough joy to wear ye; and seem and feel thus intolerably old? Close! stand close to me, Starbuck; let me look into a human eye; it is better than to gaze into sea or sky; better than to gaze upon God. By the green land; by the bright hearth-stone! this is the magic glass, man; I see my wife and my child in thine eye. No, no; stay on board, on board! -- lower not when I do; when branded Ahab gives chase to Moby Dick. That hazard shall not be thine. No, no! not with the far away home I see in that eye!' Herman Melville, "Moby Dick", Capitulo CXXXII

§8
"O Demônio colocou, então, a tigela na minha frente.‘Toma do que sobrou, Baltasar, da mesma tigela que os teus irmãos... Pois jaz no cordeiro a tua inocência, uma comodidade saudável, que o leão acaba perdendo, quando a violência embarga... Violência esta que se perde nas caretas de um macaco. E quando tudo já era brincadeira, vira lambança e sujeira, quando afunda no vinho teu focinho, o porco inútil, bicho da preguiça... ’"
Leon Bolissian - Assombrações e Visões

§7
Existe uma realidade intermediária, que é a síndrome da Hiperconsciência. De um lado aquele que vê o grande muro. O entendimento absurdo, por exemplo. Por vezes, a visão nauseabunda -Quem vivencia essa realidade, se transtorna como ser humano...

O ente do meio é como o primata antigo que encurralava os Mamutes e os derrubava de precípcios; imaginava bruxas e amava a lua apenas por que sentia que era próprio de seu Tipo idolatrar e imaginar as coisas.

Do outro lado, o doente. Ávido de novas consciências que não a sua, define-se pelos prêmio, pelas medalhas. A consciência é o seu núcleo e significa a todos de acordo com ela. A doutrina é sua liberdade e sua liberdade de agir é de acordo com a cartilha. Tem disciplina aos nomes e sua religião é... qualquer religião!



§6
O INEPTO - uma explicação em centenas de aforismos. "Porque Prelúdio 84?" me perguntaram. Porque ainda não estou pronto para escrever "sobre a neve derretida". Quando estiver, então chamarei de 84, e estaremos resolvidos - mas, por enquanto, um novo bestiário de imagens.

§5
Não se trata de coragem, ou ausência de covardia, essa calmaria resignada que se sente na luz estonteante do sol. Trata-se de um problema essencial que devemos observar na pobre flor crescendo numa sarjeta da cidade. Parece uma piada, e se ela fosse consciente garanto que estaria rindo - mesmo que fosse de desespero ou tristeza. Mas, a piada recai sobre si mesmo (the joke is on you) e se sou o único que consigo retirar de uma operação dentária toda a sua beleza estética, tenho medo de ver, adicionado a isso, dragões voadores e raposas revoltadas no momento da minha morte, tal qual a pirata nomeada Viúva de Ching.

§4
"Então, porque escrever? Imagina-se interlocutores?". Sim, evidente que eu imagino. Mas, serão eles reais? É preciso ser forte de espírito para lidar com este problema. Colocar-se perante um palco vazio, o que será que se sucede á sua magia, á sua arte. Ela resiste ao impacto doloroso do nada de fronte? Gritar para o silêncio é pior que gritar para uma multidão e não ser escutado? Estou mesmo sendo entendido ou essas palavaras estão já como invertidas, quando passo os olhos e as vejo... como eu mesmo? E quando me leio, me pergunto: "Sou mesmo inepto?", e perante essa pergunta os interlocutores todos fazem uma grande reverência e partem, deixando oléos e incenso. Perante a súbita e enérgica transformação do inepto em flâneur, do consciente em vidente, vê-se tudo com a maior calma do mundo, e poderíamos ser esmagados por um ônibus de dois andares que, caso viéssemos a sobreviver, algo tremendamente absurdo, tomaríamos um chazinho na maior calma, apenas se nos oferecessem.

§3
O inepto não caminha, e de certo modo sente remorso por isso. Remorso não! Um sentimento obscuro, mais próximo á incredulidade, mas não uma incredulidade potencializada: é uma descrença calculada, de quem desacredita apenas o bastante para remover a tinta velha e passar a nova mão. Trata-se de garantir a energia do movimento sem se mover. Na esterilidade do exercício, do prazer plenamente estético, um ganido de rato aparece, e então... é tudo! Se ganha uma calda, o próximo são os pêlos, e lhes garanto que logo estarão ruminando. Aqui, existe o que é para Dostoievski a vantagem das vantagens. O supra-sumo dos movimentos, que não pode se deter nem na inépcia ou na estaticidade que ela envolve: a liberdade!

§2
O homem de ação caminha como se houvesse um chicote a estalar na sua orelha, mas para ele isso está tudo bem. Ele não anda por si. Das duas uma: se andasse por si e andasse como se houvesse um chicote à sua orelha, então seria ele a chicotear, e auto-flagelo é uma fraqueza simplesmente inaceitável; ou não anda por si, e caminha por outro, que segura o chicote .
A rua desaparece sob seus pés e até o jumento de carga pode ser abstraído. Depois, não resta nem o caminho, tampouco o caminhante, e a força que ele pensava o levava adiante não condiz com sua realidade! Na ilusão de seu justo e digno andar, pode-se notar seu motivo dúbio e real: a má-fé!

§1
There are more things é um conto de Borges sobre o desconhecido. Dedicou-o a H. P. Lovecraft. O conto nos fala de um maldição em uma casa, la Casa Colorada. Somos levados para dentro da casa pelo protagonista e narrador, que procura uma solução para a chamada assombração de seu antigo proprietário. Ao final, o protagonista vê o que permanece para nós, ainda, um mistério. "Mis pies tocaban el penúltimo tramo de la escalera cuando sentí que algo ascendía por la rampa, opresivo y lento y plural. La curiosidad pudo más que el miedo y no cerré los ojos". A curiosidade vence o medo. É, em verdade, um afeto tipicamente Lovecraftiano. Sua dialética nos fala sempre de cientistas chafurdando leis proibidas da quimica e da antropologia, perventendo as normas sagradas da fisica, da matemática e da biologia.
Lovecraft nos fala de um poder cósmico e excepcional, locomovendo-se lentamente pela máquina do tempo, à espreita no obscuro Oceano, paciente, sim, esperando para vir à tona. As fantasias mórficas de Lovecraft nos olham com curiosidade, malignidade e indiferença. São deuses antigos, plenamente ignorantes de nossos pequenos anseios, medos e desejos.

Lovecraft criou o tipo estrangeiro do terror moderno, ou melhor, criou o terror moderno utilizando a imagem do estrangeiro como base. Isso é Poe em Lovecraft. Poe que declamou, em sua obra menos extensa, a poética: "All I loved I loved alone". O garoto que copiava lápides quando criança nos cemitérios de Boston e o garoto que morava recluso na casa de seu tio em Providence, New England, eram de tipos diferentes.

Kafka é o autor do fantástico, mas me parece que sua premissa é a afirmação do sujeito. Não que ele negue a supremassia do inefável: Joseph morre, K. não chega ao castelo. Mas, por que vive no campo diegético onde os caminhos negativos são plenamente vividos pelos personagens, Kafka cria uma história orgânica de consciência. Seus personagens possuem a estranha mania de simplesmente continuar seguindo, não importa o obstáculo.
Quando K. é requerido a entreter um cliente italiano, e este acaba por não comparecer ao encontro, ele escuta, na catedral, no sermão do padre a fábula que depois foi publicada separadamente sob o nome de "Diante da Lei": "
Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. 'É possível", diz o porteiro, "mas agora não'". Temos aqui a figura tipicamente rechassada do homem frustrado.

Joseph K., personagem do livro mais famoso de Kafka e protótipo perfeito do tipo kafkiano, vive o absurdo do processo invisivel mas se mantêm resoluto de sua inocência. Ao final, enquanto giram-lhe a faca no peito, como uma chave, ele se liberta da angústia. É o fim absurdo para quem vive pelos corredores burocráticos da absurdidade.
Em Das Schloß, K. é um agrimensor contratado por um duque a trabalhar no castelo onde reside . Enquanto o jovem agrimensor tenta entrar no castelo do duque, diversos impedimentos o proibem de chegar ao castelo, mas sua busca não cessa.

O castelo é inalcançavel, assim como é ininteligivel a lógica do processo e impossível a absolvição no julgamento.


Um Novo Bestiário

PRELÚDIO 84 é uma tentativa.
Um resgate da imaginação, da metáfora!

Ser frio e vidroso, sempre...